Hoje, compartilhamos o texto “Zona do trauma” do recém lançado livro “Contos Quânticos”, do escritor, pesquisador e professor de Literatura da UFCG/Cajazeiras. Uma honra para o nosso espaço virtual!
A narrativa convida o leitor a refletir sobre histórias em que realidade e ficção se intertextualizam entre o individual e o coletivo, entre sermos pais, sem sermos nação.
Convidamos os leitores e leitoras, por meio de sua subjetividade, a reconstruírem as suas interpretações a partir de suas próprias vivências.
Espero que apreciem.
Na hora de dormir começava o meu pesadelo. Ficar sozinho, no quarto. Ouvir minha mãe dizendo para eu dormir logo.
– Fecha os olhos, durma! Eu não vou ficar aqui a noite toda, te balançando, não. Trate de dormir logo!
E eu cerrava as pálpebras e começava a ver muitos olhos de todas as cores, como se a espiar minha agonia. Eu tinha uns três anos e o Brasil estava vivenciando uma turbulência ideológica, fruto da insatisfação dos militares com a renúncia de Jânio Quadros e a possibilidade de assunção ao poder de João Goulart, que estava em visita oficial na China. Eu não tinha que saber nada disso. Eu só precisava dormir sem ver aqueles olhos me apontando uma culpa de ser criança num país onde se cria que os comunistas comiam criancinhas. Tempos depois, na faculdade, percebi o quanto éramos um povo estúpido. Em nossas raízes havia um choque irremediavelmente irresolvível de culturas inconciliáveis. Índios no paraíso, negros no inferno e brancos com o chicote e o bacamarte nas mãos. Os brancos estupravam as índias e as negras e nós íamos crescendo com a culpa da raça estuprada. Os filhos deste estupro histórico foram se adaptando a uma vida de subserviência e indignação. Carregavam uma culpa de não serem filhos da casa grande, da escola, das roupas limpas, do sorriso com todos os dentes. Cortavam-se, culpados, nas linhas dos pés rachados, no cheiro de suor e sol, misturado a cheiro de animais. Sentiam os cheiros da casa. Rosas dos quartos das moças. Carne cozida, feijão, bolos da cozinha. E o cheiro de sexo misturado a suor e sol mal anoitecia, nos estábulos e quartos de despejo, onde se cruzavam para aumentar a prole. Em poucos anos, havia muitos braços e pernas para cuidar dos meninos brancos e das meninas loiras. Eu não precisava me sentir culpado. Eu só precisava compreender por que o povo aceitava tudo sem revolta.
E todos os dias, antes de dormir, eu me escondia daqueles olhos farejadores. Não lembro hoje dos sonhos que tive. Vez por outra, ouvia o relinchar de um jumento açoitar o silêncio da noite com aquela impaciência de quem estava preso, piado, para não ir longe e não dar trabalho ao dono. Fui crescendo sob o chicote do branco, de olhos verdes e a fala cheia de verbos bem conjugados. – Se você for reprovado vai levar uma surra e vai se arrepender, porque eu vou lhe tirar tudo, entendeu?
Aprendi a falar com as lágrimas e com os olhos culpados de não ser o homem do chicote. Busquei vingança, fiz planos, mas nada que não passasse de malfeitos que uma surra não curasse. Fui seduzido pelos livros, pelas histórias em quadrinhos e pelos quebra-cabeças. Cada página, cada aventura, cada imagem perdida numa peça de montar eram desafios que precisavam ser vencidos. Deixasse meu pai com seus verbos e minha mãe com o avental sempre úmido. Eu iria me libertar. Só poderia fazer algo pela minha mãe se eu me libertasse da culpa de todos os humilhados. Só poderia argumentar com meu pai se eu aprendesse a conjugar os verbos e engrossasse o pescoço de adolescente rebelde e inconsequente. Existirá um Deus que ampara os humilhados ou esse Deus é de propriedade dos ricos e dos homens de chicote que erguem igrejas, dão festas e aprisionam pobres na culpa de serem raciados, misturados e quase sempre com cheiro de suor e sol.
Na minha infância eu ia para a igreja aprender a ser pobre. Jesus estava do lado dos pobres, mas eu só conseguia enxergá-lo do lado dos ricos porque só os ricos iam para as melhores catacumbas. Havia delas onde as pessoas podiam entrar. Tinha sala, bancos e oratório para velas. Os pobres ficavam na areia rasa, com uma cruz de madeira e umas flores de plástico, enquanto os parentes enfiavam o pé na areia frouxa, desenterrando ossos. Quando um pobre morria, era preciso juntar os ossos do esqueleto anterior e os colocar num saco de carvão, com a boca amarrada para não perder nenhuma parte do finado mais antigo. O mais recente, era coberto com a mesma areia nutrida dos vermes, formigas e baratas do caixão anterior. Os ricos usavam óculos escuros, lenços e gestos falsos de contrição. Os pobres, o desespero e os cabelos em desalinho, roupas rotas amarrotadas, lamento sincero, muita verdade para mostrar fidelidade. E Deus devia ficar espiando as cenas e movendo a manivela do mundo.
Havia um templo Batista em frente à minha casa que recebia roupas de americanos que as doavam para serem distribuídas com os pobres. Depois de tirar as melhores roupas para a sua família, o pastor organizava em lotes e vendia todas numa só tarde. E íamos nós, pegar o que pudesse para depois pagar o equivalente a 10 reais por peça. Minha mãe multiplicava seus braços, como um polvo a abraçar camisas, calças e bermudas, torcendo para que os seus cem reais pudessem fazer a feira de uma moda emprestada para os pobres. A moda de vestir sobejos de americanos. Eu odeio os americanos por nos daremsobejos, e odeio os pastores que ganham dinheiro com as sobras. Eu odeio os pobres que se vestem de americanos. Depois de pagar à esposa enjoada do pastor, a gente ia para casa, provar as roupas que minha mãe sempre consertava na sua velha máquina de costura Vigorelli.
Eu ia para as festas com as roupas novas e sempre ouvia elogios.
- Calça bacana!
Foi meu tio que trouxe dos Estados Unidos.
Eu odiava as mentiras que contava, porque eu as dizia por ser pobre e não poder ter roupas de ricos.
Percebo, hoje, que muitos carregam traumas e levam uma tristeza infinita na alma. Traumas que ficam numa zona do cérebro destinada à felicidade. Essa zona, em mim, está lotada. A felicidade está longe de encontrar esse caminho.
Outra importante obra do Autor
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