Certa vez, ganhei um livro de presente de uma amiga, que tinha um título, traduzido para o português, no mínimo instigante “O guardião de memórias”, de autoria de Kin Eduards. Às vezes, quando me vejo resgatando textos de eras mais distantes, ou de outras nem tanto, penso nesse título.
Os registros feitos e deixados em pastas esquecidas, quando resgatados, parecem essas memórias, guardadas ao longo dos séculos de nossa existência.
Hoje, apresento uma crónica existencial, inspirada nas minhas leituras do autor português Vergílio Ferreira, autor de Aparição, entre tantas outras obras magistrais.
Espero que apreciem.
Lentamente, a pedra caia. Cortava o espaço na sua singularidade de objeto qualquer. Como um pássaro ferido, desprendia-se da sua certeza de ser para continuar a sê-lo.
Não se sabia quem a lançou ao espaço inóspito e desconhecido. Ao tocar as águas inertes do lago, produziu um som oco e gutural para depois se precipitar para o fundo.
Na superfície tocada, via-se os movimentos incessantes e contínuos, circulares. Uma após a outra, as pequenas ondas surgiam do seu próprio corpo maior. A pedra já não importava mais. Apenas a sua memória, refletida no seu movimento singular, denotava a sua passagem.
Naquele instante, caia já a tarde. Ao serenar da noite, as planícies líquidas e tranquilas descansavam no remanso. Despiam-se de suas vivências e tudo voltava a calma. O silêncio se vestiu de luto novamente o ar, mas um instante suspenso ainda pairava na expectativa do próximo dia.
A inexatidão daquele momento não expressava o todo. A realidade se esvai, abstrata, turvando-se diante do improvável e, de súbito, nos leva para dentro do próprio existir. Assim, como o homem enfrenta as intempéries do seu deserto. Apalpa sentimentos dentro do seu peito dilacerado e uma sombra aziaga permeia a paisagem (des) conhecida.
Chove uma garoa de ontem. Fina, constante, insistindo em molhar as inúmeras esquinas, da cidade cinza.
Silêncio. Inexatidão de corpos. Murmúrios gotejam os desejos pretéritos e imperfeitos. Um homem caminha pela calçada de pedras irregulares. Seu passo secular atravessa lagos, oceanos e a chuva, agora, molha de luto o seu sobretudo. Diante de seus olhos, perpetua-se um sorriso congelado no tempo e a vontade de continuar.
Nítido, nulo, um gesto remonta a vida, reintegrando-se à paisagem. Na sua torpe existência, balbucia palavras, dando-lhes vida. No limiar de seu horizonte, o desejo, a vontade em chegar ao outro lado do deserto urbano.
Um homem só, misturado aos outdoors, shoppings, news, cars, crisan, blue, tempo, vivasvaias.
O estômago pesa-lhe no ventre ferido. A dor de ser (parto)? As cores dos automóveis se reavivam diante do seu olhar ad infinitum. Lenta metamorfose de nossos dias, este homem, que só, é nada.
Transeuntes indiferentes pisam o seu corpo fragmentado. Arranha-céus, com suas unhas pontiagudas, riscam o cume do mundo. Este mesmo mundo que estamos destruindo aos poucos.
A chuva molha-se.
Reconhece-se em si mesma.
Na tarde apagada, o quase-ser estampado.
O quadro imóvel da urbanização.
Boa! Como sempre, um banho de lirismo poético... muito bom!