Antes de compartilhar esse conto com vocês, caros leitores, gostaria de confidenciar um de meus gostos preferidos, que é viajar de trem. Sempre fui uma espécie de aficcionado por esse modelo de transporte de passageiros, de longa distância, que, infelizmente, foi se deteriorando em nosso país até, praticamente, desaparecer da vida de nós brasileiros.
No entanto, a memória ferroviária, o trem e suas peculiaridades ficaram enraizados na cultura popular, sendo expressos por meio das mais variadas manifestações artísticas. Nessa perspectiva, inclusive, há alguns anos, criei um projeto denominado "Música sobre trilhos" que tinha como objetivo resgatar essa memória ferroviára na música popular brasileira. Dentre as pérolas que encontrei, posso destacar "Ponta de Areia", com Milton Nascimento, "O Trenzinho Caipira", de Villa Lobos, "OTrem das Onze", de Adoniram Barbosa, e algumas outras preciosidades.
Essas e outras músicas poderão ser encontradas em nosso blog "Caminhos de Ferro", que está no ar.
Todos e todas estão convidados a embarcar nessa viagem, e aproveito para convidá-los a conhecer nossos caminhos de ferro. É só acessar o link, abaixo.
Espero que apreciem.
Desceu de seu carro, caminhou alguns metros e avistou logo à frente a arquitetura antiga.
Absorvido em seus pensamentos, João tentava decifrar os rabiscos, que a chuva desenhava no pátio alagado da estação. O dia estava cinza, como tantos outros nessa época do ano.
O lugar estava vazio, não marcava os horários; aliás não passava por ali qualquer trem há um bom tempo. Os trilhos quase não podiam ser vistos, perdiam-se entre dormentes apodrecidos desses caminhos esquecidos. Bancos quebrados olhavam para a plataforma deserta, sem passageiros e suas vidas misteriosas. O piso trincado por rachaduras expunha memórias escondidas.
João olhava, mas não via, apenas pensava (...)
Chu ... chu ... chu ...
- Atenção, Senhores passageiros!
O próximo trem para Anastácio partirá dentro de cinco minutos. Queiram ocupar seus assentos e boa viagem.
Piui ..chu ...Piui ...Chu chu chum chuchchchchchchchchcchh (...)
Anástácio, uma pequena cidade o interior paulista. Com pouco mais de 5.000 habitantes, vivia basicamente da agricultura, muito embora já sofresse os reveses da industrialização, e da modernização incentivadas pelo governo de Juscelino.
A febre do progresso em pouco tempo invadiu as casas e tomou a cidade. Surgia a televisão, sinônimo de vanguarda na comunicação de massa. Os automóveis enchiam as recentes e bem construídas estradas de rodagem, que começavam a traçar um novo traçado urbano.
João, em suas lembranças mais antigas, sentia o balouçar do vagão, jogando de um lado para o outro em um chacoalhar incessante.
- Próxima estação: José de Moura,! Alertou o bilheteiro, que ticava as passagens, conferindo, com ar de seriedade, se tudo estava certo.
Era comum, ao longo da via férrea, o trem parar em lugarejos esquecidos por Deus. João de Moura era uma dessas localidades. Com apenas duas ruas descalças, e um punhado de pequenas casas, denunciava a pobreza da região. Naquela época, o trem era o encanto da garotada e um dos únicos meios de transporte de massas de longa distância. Quando ia se aproximando da estação, as crianças corriam, ao lado dos vagões, acompanhando a chegada do "gigante" de ferro.
Encantados pela magia das rodas, e o ruído do atrito com os trilhos, agarravam-se aos vagões, pegando uma breve carona até parar na estação da cidade. Era como se estivessem em um carrrossel, só que,em vez de ser circular, andava em linha reta.
O seu Antonio Queiroz, empregado da Sorocabana, há mais de 30 anos, em vão tentava fazer com que descessem. E gritava com voz rouca:
- Desçam dai, seus moleques!
- É perigoso e vou contar tudo para os pais de vocês.
Mas , apesar desse esforço, ninguém dava bola para o seu Antonio.
Aos poucos, João de Moura foi ficando para trás.
A viagem prosseguia e ao lado de João, sentava uma senhora muito gorda,transpirando por todosos poros. Cochilava, acordava, acordava, cochilava ao sabor do ritimo do trem. Incomodado, João dava cutucões na senhora. Tossia, pigarreava, inutilmente, tentando acordá-la.
Fazia mais de 20 anos, que tinha deixado Anastácio.
Rascunhava esboços para compor alguns quadros em sua memória antiga. Lembrava-se do Zé, menino órfão, que perambulava pelas ruas das cidade. O velho Mané, não o Garrinhca, mas outro, que também era fanático por um jogo de bola.
De repente, surge em sua mente o rosto do Antenor. Por onde andaria o intelectual do grupo?
Nas noites frias, era comum vê-lo dando instruções para pregar peças, nos transeuntes desavisados, com as brincadeiras de assustar, como diziam.
Ainda havia muitos terrrenos vazios, na cidade, e alguns com mato alto, com atalhos para cortarem distâncias entre um bairro e outro. E era justamente nesse caminho que aprontavam suas peças preferidas. Uma delas era a seguinte: faziam olhos em caixas de papelão, como se fossem cabeças humanas. Em seguida, colocavam uma vela acesa em seu interior, e deixavam à beira do caminho.
Escondidos, aguardavam ansiosos a reação de suas futuras vítimas e, ao final, após o resultados conquistado, era um festival de boas gargalhadas.
A chuva ainda persistia fina, desenhando seus enigmas pelo cimento velho, enegrecido pelos anos.
E João, ali, parado, esperando o trem para Anastácio, que não mais chegaria.
Aos poucos, foi saindo de uma espécie de torpor.
Passou o braço pelo rosto, afastando as gotas de chuva, que embassavam e distorciam a sua visão.
Olhou mais uma vez o cenário, que se desenhava em sua mente.
Voltou-se, agora, para o seu automóvel.
Caminhou em sua direção.
Abriu aporta, deu a partida e Anastácio foi se perdendo na distância.
Comments