Patrícia Martins nos brinda, com seu texto, "O Salto", uma narrativa intimista e, ao mesmo tempo, evocatória de sentimentos vários, que vão se desenhando ao longo do dizer literário (e por que não pensar no "desdizer" inferencial?).
O enredo, à primeira vista, parece oferecer uma interpretação livre, de espectro amplo, em que as memórias afetivas da Personagem Central se condensam, por meio de uma linguagem ausente da linearidade temporal e do lugar-comum.
Engana-se, porém, quem, porventura, acredita que essa é a proposta interpretativa apresentada pela Autora!
Ao contrário, à medida que se avança, na leitura, é possível perceber que a trama é planejada e estruturada, em um tempo singular, a partir de "pistas" sutis, que têm na saudade afetiva uma de suas principais ancoragens temáticas, representada, por exemplo, no seguinte trecho:
"Corrida em saltos para apanhar o trem, sua vida muito longe para quem a olha já distante, sentada a um balanço de comboio, depois sua cabine a se esvaziar depressa, um banco em que, na benesse da altura dele, balançam-se os pés para examinar o tempo no tilintar dos saltos. Saudade de quando não os tinha para brincar com eles...".
Convido os Leitores e as Leitoras de nosso espaço "Páginas Literárias" para o desafio desse "Salto" interpretativo no conto de nossa Convidada.
Espero que apreciem.
Os sapatos brilhantes doíam-lhe os pés. Tinha saudades de tudo naquela condição incômoda, sobre saltos, ainda que fossem de fato muito belos os tais sapatinhos da mamãe. Tirara-os do armário sem pressa, sem ideia alguma de que os viria usar. Fora só para uma olhadela, um contato apenas, tocar com os dedinhos miúdos os cristais muito da moda que em pés dão elegância de fazer voar para lá de estrelas. Sim! Mamãe sabia mesmo voar em saltos! Era dentro deles que ela planava com elegância entre os salões das casas quase sem barulho algum para não perturbar o voo.
Com eles subia as escadas, dois lances ou três, até que os degraus já não mais existissem para lhes reterem os pés. O restante de sua caminhada era um movimentar suspenso em fios com os quais se ligava ao céu e, num flutuar de asas, terminava sempre por ocupar lugar no firmamento, duas estrelinhas miúdas, seus pezinhos, cumprindo a trajetória de suas longas caudas, como dois cometas que para o infinito não...
Assim, logo a menina os apelidara de sua máquina de tocar nuvens. Quando os tirara do armário, não desejava outra coisa senão levitar, deixar para trás a altura inacessível de alcançar pias, sabonetes e copos nas cozinhas. Seu pensamento sempre fora mais que o limite que todas essas coisas feitas pelos adultos têm. Estava certa de que lá em cima encontraria o céu e não errou. Tão logo o alcançou sobre as duas plataformas, o resto veio a ser aquela planície imensa, todas as coisas prontas a se perder de vista e o por fazer o terreno fértil, já arado, de sua imaginação sem portas.
À memória nova, a figura de um boi de ilustrar louças a encará-la e ela a segui-lo sempre. De noite ele lá, no decorar das peças, no lavar e de volta ao armário enferrujado e triste: cantilenas vindas de vozes subjetivas, os adultos...
A porta do armário entreaberta, alguém a tirar da última prateleira, a mais alta, o boi pintado a ditar a altura de seus sonhos. Xícaras e pires à direita, ao lado, talheres, agora mais alto, mais alto sempre, última prateleira, boi pintado a se perder dentro do armário enferrujado e triste. Cantilenas vindas de vozes subjetivas, os adultos...
Corrida em saltos para apanhar o trem, sua vida muito longe para quem a olha já distante, sentada a um balanço de comboio, depois sua cabine a se esvaziar depressa, um banco em que, na benesse da altura dele, balançam-se os pés para examinar o tempo no tilintar dos saltos. Saudade de quando não os tinha para brincar com eles...
Nuvens pesadas demais os anos, tais quais aquelas que ficam penduradas nos varais, dentro das roupas encharcadas, em meio às tempestades. Tocar nuvens deveria ter sido uma brincadeira melhor do que aquela, não imaginara que voar fizesse sofrer tanto! Olhou um pássaro na roseira junto à parada do comboio e teve muita pena dele. Boi pintado a se perder dentro do armário enferrujado e triste.
Antes que descesse a terra, uma saudade tomou seu coraçãozinho já quase em pedaços pelo pássaro que a olhava assim, descontente. Lembrou-se das mãos do pai, tempos atrás, das louças na última prateleira, do boi pintado a se perder triste nas peças do armário enferrujado, dos restos de doces nas tigelas, das mãos só presentes antes de lhe chegarem os saltos, nelas cravadas as memórias antigas das cantilenas vindas de vozes subjetivas, os adultos... vozes vindas do céu de nuvens cinzas a encharcar as roupas em meio às tempestades.
Então, o plano comum de todas as coisas, rés-do-chão, pareceu-lhe, de fato, a melhor paisagem que se podia ter.
Precisava descer, precisava! Mas, de repente, percebeu que já não mais sabia! Alguma coisa havia mudado dentro de seus pés já muito inchados. Parecia que se formara ali um coração dentro, pulsando, pedindo que ela aguentasse um pouco, um pouco mais apenas, dentro daquela forma estranha a ressoar aguda pelos calcanhares. As bailarinas têm os pés na alma, ela, a alma nos pés com saltos a sustentá-la, e pronto! A altura de seus sonhos. Podia notar, e só agora, que vida estranha tinha sido aquela: boi pintado a se perder na louça triste, dentro do armário enferrujado, cantilenas de vozes subjetivas nas nuvens cinzas a encharcar as roupas depositadas nos varais do tempo, restos de doces nas tigelas dos adultos e depois guardá-las a se perder de vista em meio às tempestades.
Salto do comboio de se quebrar o salto... ai, que lástima! Deixar pra lá, deixar pra lá, definitivamente... Desde cedo, ouvira falar daquele pássaro, olhinhos arredondados, que todo adulto guarda na infância, para além e dentro, à última prateleira de nuvem e firmamento. Seu pai voara ao céu, ela ainda menina, em uma espiral de altura e sina. Imóvel ele lá, na para do comboio, tristeza contida, guardada, ele guardado, canto de embalar coração triste. Sim!.. Ter-se em saltos não tinha sido outra coisa senão pretexto para se ganhar altura nos quintais da infância até alcançar, já morto, o pai outra vez...
Pudesse alguém contar essa história descabida, talvez tudo fizesse sentido enfim, sentido de se ler de trás pra frente, sem que necessário fosse suportar a desordem que todo tempo engendra, até que o que restasse fosse o interlúdio de uma vida inteira: a mesma cena a repetir-se como peça-síntese esquecida em um aparador qualquer.
Mas, afinal, que tinha sido mesmo a vida? (boi pintado a se perder na imensidão de um armário enferrujado e triste - cantilenas de vozes subjetivas - e... restos de doces nas tigelas).
Fim.
Quem é Patrícia Martins? (Por ela mesma)
Patricia Martins, mestre em Fisiologia e Biofísica, doutora em Ciências, pelo Instituto de Ciências Biológicas da UFMG. Pós-doutorado em Saúde Coletiva pela UNIFESP. Instrutora certificada de Mindfulness pela UNIFESP. Idealizadora do site Projeto Pausa, para manejo do estresse e ansiedade entre profissionais da saúde. Coautora do livro Em Voz Alta, Comunicação Não Violenta e Mindfulness. Idealizadora do Projeto Fados de Maio, uma proposta de estudo e divulgação da música de língua portuguesa no contexto da lusofonia.
Para conhecer um pouco mais sobre a Autora e sua produção, compartilho a sua participação no "Entre Amigos", que aconteceu no dia 15-05-2024 em nosso canal do youtube "Convergências".
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