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Foto do escritorSaulo César Paulino e Silva

O ERNESTO MORA NO BRÁS - CRÔNICA

Atualizado: 23 de mai.



Imagem de rede social

 

Enquanto estou aqui, pensando o que falar a respeito do Ernesto professor, meus dedos vão tamborilando sobre a mesa o samba do "Arnesto", imortalizado na música de Adoniran Barbosa, aquele paulistano com voz rouca e sotaque típico dos descendentes da italianada, que chegou por aqui, na virada do século XX.

E o que esses dois personagens (Ernesto e Arnesto) têm em comum?

Para responder a essa pergunta, será preciso revisitar a afetividade de meus tempos de ginásio, hoje ensino fundamental.

Sou sobrevivente de uma geração criada sob o manto do medo e do milagre ditatorialmente econômico, sem qualquer consciência, naquele momento, de que o espaço da sala de aula, com raras exceções, não era o local onde se podia conversar assuntos outros, que fugiam ao senso vigilante do "Grande Irmão" fardado, do cassetete e dos choques aplicados durante a tortura.

A escola onde estudei, nessa fase de minha vida, se chama, ainda, Deputado Silva Prado, localizada na Zona Leste de São Paulo, e homenageia um quase socialista democrata,nos anos pré-golpe de 1964. Lá eram seguidas as regras daquele ideário político, sob a batuta inclemente da diretora Aparecida Guidorizzo; viviamos, assim, uma espécie de "extensão" da ditadura, que disseminou o medo, sequestrou as infâncias e as liberdades.

Nosso uniforme era composto por camisa branca, calça cinza e meias brancas. Posteriormente, foi substituído por um guarda-pó branco, sem graça e asséptico. O controle da frequência era um carimbo escrito "presente" em espaço reservado na caderneta escolar.

Antes de entrarmos para a sala, cantávamos o hino nacional, que não encantava, sob formação militar, como se estivéssemos em um quartel civil, obedientes as ordens explícitas, embaladas no frenesi dos versos "esse é um país que vai pra frente ..." (da propaganda oficial), ou pela letra ufanista da música de conquista do tricampeonato mundial pela Seleção Brasileira de Futebol.

Em meio àquela realidade nada saudosa, tive a oportunidade de assistir aulas com o professor Ernesto Emboaba, de Língua Portuguesa.

Mas quem era esse Ernesto?

Para nós, um professor (quase) sisudo, enigmático, que no meio dos estudos sobre catacrese e metonímia, aproveitava para tecer críticas metaforicamente veladas ao sistema. Um de seus motes preferidos "nem tudo que é bom para os Estados Unidos, é bom para o Brasil" era repetido com frequência; e foi em uma dessas conversas informais, que nos contou um pouco sobre a sua vida.

As duas tatuagens que carregava no dorso das mãos, uma sereia, na direita e uma estrela na esquerda (ou seria o contrário?), aguçavam ainda mais nossa curiosidade infantil! Entre conteúdos gramaticais e noções literárias, nos confidenciou que havia sido aluno de teatro do reconhecido (desconhecido para nós) Ziembinski.

Certa vez, em algum momento, parou, olhou de maneira cúmplice e perguntou com sorriso maroto:

- Vocês conhecem a música "Ernesto", do Adoniram Barbosa?

Ninguém respondeu.

O silêncio sepulcral, que se manifestava nos olhares atentos de muitos, parecia querer responder sem saber. Mas antes que divagássemos sobre a pergunta inesperada, emendou:

- O Ernesto da música sou eu.

- Moro no Brás e quando era criança engraxava os sapatos de muita gente nas ruas do bairro e um dia o Adoniram me deu essa honra. Depois, fui saber que o Ernesto do samba contava um pouco a minha história.

O silêncio continuou por mais algum tempo.

Em seguida, continuou o seu conteúdo e eu guardei, não as regras da colocação pronominal, mas essa história na memória de longo prazo, que é aquela que contribui linguistico-cognitivamente para a construção de nossas identidades sociais, segundo Teun V.Dijk, renomado linguista holandês.

Sempre que tenho oportunidade conto essa passagem, que me faz "viajar" para aquele momento. No ano de 2017, por exemplo, ao realizar uma entrevista no Museu da Pessoa, tive a oportunidade de compartilhar na gravação essa narrativa.

O tempo passou, e com essa passagem veio a revolução das redes sociais, entre tantas outras mudanças em que a vida analógica passou a ser outra, tornando-se, agora, digital. E qual não foi minha surpresa e alegria quando uma pessoa, contemporânea dessa aventura, ou ao menos do contexto daquele período, compartilhou algumas fotos e lá estava ele!

Quem?

O Ernesto, como eu o havia guardado na lembrança!

O nosso professor de Português, que inspirou o Adoniram, que criticava o Sistema entre metáforas, que tinha duas tatuagens, que havia sido aluno do Ziembinski e que foi o inspirador para eu me tornar também professor.







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