Hoje, abrimos espaço, no ENTRE AMIGOS, para apresentar um dos muitos e interessantes trabalhos literaríos do escritor Angelo Asson. A leitura do texto nos leva a uma espécie de catarse em que a metáfora antropofágica sugestiona uma provocação narrativa, kaficaniamente existencial.
Catarse é um termo grego (kátharsis), que significa a purificação do espírito humano, expulsando o que é anormal à natureza humana em sua totalidade.
Ao meu ver, o autor consegue êxito nessa sua intencionalidade genial e abstrata, quando trata sobre o tema vida e morte (ou morte e vida), trazendo-o para o "prato" cotidiano, onde eventualmente comeremos um bife ou poderemos, também, ser devorados, pois nossos corpos (e mentes) são passíveis de serem consumidos pelos vermes, no findar do caminho.
Compartilho, abaixo, uma fala contextual, em que Asson nos revela "el apunte de un afán", que deu origem ao seu texto:
"Me veio esta situação à cabeça exatamente no momento em que estava almoçando. A carne no prato, de um animal morto, um cadáver a me servir de alimento. E nós, humanos, um dia seremos tão "bifes" quanto aquele pedaço de carne inerte estirado no prato."
A seguir, o texto na íntegra.
Espero que apreciem.
Naquele dia, ao se preparar para cortar o bife durante almoço, ela se deteve, imobilizando a faca no ar, ao mesmo tempo em que o garfo aferrava o pedaço de carne forçando-o contra o prato como que para evitar a sua fuga do golpe certeiro.
Seu pai estava no hospital, entre a vida e a morte. Podia-se dizer que ambas – vida e morte - já quase se tocavam de tão próximas. E foi exatamente esta a imagem que lhe veio à cabeça quando se preparava para cortar o bife: o corpo de seu pai se esvaindo num lento processo de mutação e transformando-se em algo sem vida, putrefazendo e tornando-se algo intragável, impossível de ser digerido.
Foi o que a fez se decidir pelo celibato gastronômico. Daquele dia em diante ela jamais colocaria um só pedaço de carne na boca. Só de pensar já lhe vinha à mente a imagem de seu pai, ela o prendendo ao prato com o garfo e atravessando sua pele com a faca, rasgando seus músculos, moendo seus ossos para, enfim, trazer uma pequena parte dele para dentro de si.
Ela que, ao nascer, nada mais era do que a soma de uma parte do pai, outra da mãe, agora se encontrava – ainda que em pensamento –, quase que revertendo parte do processo, trazendo uma das metades para dentro do seu corpo.
– Não posso!
A mãe, sentada numa cadeira de rodas ao lado da mesa, apenas observava e repetia: “Come, come!”. Seu passatempo era repetir as frases para pessoas desconhecidas, como aquela estranha com uma faca na mão e olhar fixo no prato.
– Come, come!
– Não posso! Podia ser meu... – e volta-se para a anciã. – Podia ser...
Pousou a faca sobre a mesa e, delicadamente, retirou o garfo daquele pedaço de corpo inerte. Arrastou-o com cuidado para um outro prato e cobriu-o com um guardanapo para que não pudesse vê-lo. Tentou terminar seu almoço. Não conseguia. A carne, o pai, a faca, os vermes...
– Come, come!
A filha olha para a mãe, olha para o prato onde havia colocado o bife, retira o guardanapo, toma o prato com as mãos e oferece à velha senhora que baixa a cabeça e força a vista para enxergar melhor.
Com o olhar fixo no prato e parecendo querer buscar na memória algo que pudesse traduzir em palavras o que via, demora-se na reflexão. Instantes depois, parecendo ter encontrado o significado daquele gesto, uma lembrança saudosa goteja de um olho para temperar a finada carne.
É um texto que mesmo não querendo, nos faz refletir, algo meio louco, estranho, pensar em que muito em breve seremos assim, um pedaço de carne, morta e como dizem por aí, sempre ouvi falar, feliz se a terra te comer. Essa é a nossa futura realidade e o que nos aguarda, nos tornamos um pedaço de carne, fria, morta e sem ter como nos defender, sermos incondicionalmente comida por vorazes vermes. Me arrepia ao pensar nisso, ao mesmo tempo que não quero, sei o quanto é real isso, e não há como escapar desse destino, para mim, tão triste saber que serei um dia, um pedaço de carne morta insignificante, onde havia tanta vida, um dia não haverá mais…
Muito bacana o texto... degustei e o digeri suavemente... realmente provoca uma catarse!