Reflexões sobre o 31 de março de 1964
Saulo C. Paulino e Silva
As marcas que se eternizam na memória coletiva, deixam as cicatrizes expostas nas entrelinhas do calçamento irregular das avenidas dessa grande cidade. Hoje, seria um dia como outro qualquer, se não fosse.
Muitos transeuntes passam desatentos defronte ao prédio antigo, e não conseguem ouvir os gritos de horror, que exalam das paredes cinzas, os xingamentos, a tortura no pau de arara, o choque, que destroça as entranhas humanas, alimentando-se do sangue que escoa por entre as grades, das celas imundas, que guardam esses segredos quase oficiais.
Nasci nesse tempo profano de quase 1964, em que as escolas eram vigiadas pelos caguetas do sistema, e as conversas de corredores denunciavam, sem efetividade, o desaparecimento desse ou daquele professor. Nessa lição nada didática, éramos obrigados a cantar, em formação militaresca, um hino que pouco ou nada significava em nossas vidas.
Cresci entre a ingenuidade de quem não percebe as coisas; paradoxalmente, no entanto, podia intuir a perversidade institucional, por meio vivencial dos cochichos a boca pequena, das proibições, do medo estampado nos olhares submissos em quase todos. Colegas dos tempos de infância, que reencontro, vez ou outra, em redes digitalmente sociais, parecem ignorar aquele cenário de dor, defendendo o status quo do “Brasil Gigante”, cantarolando o bordão-assassino, “esse é um país que vai pra frente”.
Aconselham-me a esquecer, a “não olhar pelo retrovisor da história”; afinal, tudo isso é bobagem, pois não fui protagonista de luta armada, ou filiado a partido proscrito pelas mãos da Ditadura! Outros duvidam que tudo aquilo existiu, ou comemoram a vitória do bem contra o mal, convertendo-se a uma crença em que um Salvador irá redimi-los de sua ignorância, ao lerem as páginas amarrotadas de suas bíblias incompletas.
Hoje, poderia ter amanhecido um outro dia; menos triste, menos nublado!
Queria ser como alguns que se embriagam no futebol de caráter duvidoso, compartilhando uma cerveja quase quente como a alma que purga nos infernos da insensatez, mas não consigo. A verdade sempre transpassa nossos olhos e sentimentos como uma lança, enfiada a sangue frio em nossa alma.
Se boa parte não sabe, ou não quer saber, aqueles que viveram direta ou indiretamente os abusos do Estado-Assassino, escutam esses gritos “calados atrás das grades”, seja em Punta Rieles, no Uruguai, onde Flávia Schilling ficou aprisionada, ou por aqui, na (re) conhecida “casa da vovó”, em pleno bairro nobre da cidade de São Paulo, onde se matou e torturou Herzog e tantos outros!
Eu queria falar, neste breve texto, a respeito da “memória sobre a tortura”, mas me prendo no calabouço daqueles que tiveram sua memória sob tortura e não esquecem as cenas de horror que viveram, e os fazem prisioneiros em seus pesadelos diários.
O que mais me preocupa, neste presente, diante de uma sociedade acéfala, é a indiferença diante dos latidos de um Presidente, eleito nas urnas, que defende a tortura, o torturador, a perda da liberdade em cenários imundos, o espancamento e a sevícia alimentada pelo sadismo de “heroicos brados retumbantes” agentes do Estado-Prisão.
Hoje, poderia ter amanhecido outro dia, e o Brasil seria outro. O sorriso seria outro e os sonhos de um mundo melhor não teriam se esfacelado.
Hoje, poderia ter amanhecido outro dia.
Que bom que você não se contenta com uma cerveja quente e o futebol. Parabéns pelas palavras !