O homem não pode ouvir de onde viera o disparo! A multidão correu desordenada, buscando lugar seguro.
Sérgio, coitado, mal teve tempo de perceber o estampido e desabou sobre suas pernas trêmulas e abandonadas. Fadigado, como se estivesse pesando toneladas, sentiu o mundo se desvanecer. Em um lapso temporal, parecia habitar uma espécie de hiato entre o delírio e a realidade, desses que se vê em algum filme de boa ficção científica.
Sentia-se como um grão de areia, soprado pelo vento suave entre as dunas de um deserto imaginário. As águas do mar gelado não refrescavam a sua boca, ao contrário, sentia o sal cortar seus lábios feridos de memórias esquecidas.
- Onde estou?
Perguntou para si, sem esperar qualquer resposta.
Ao longe, o marulho das águas a espraiar-se pela orla, era como turba acentuada de sons indecifráveis.
O suor desperendia-se do seu corpo, molhando o chão quente, sob o seu peso.
Luzes, uma paisagem desética.
- Mas como estar, agora, em um lugar onde a vida se vai escorrendo para o fim?
O som de sirenes se misturavam à paisagem estranha! Delirava! Freneticamente, o seu interior se convulsionava em meio ao abstrato e desconhecido.
Alguns curiosos se aproximavam, vozes, burburinho, cochichos e sons, que se misturavam, confundindo realidade e devaneio.
Uma voz, em meio ao tumulto, perguntou:
- Alguém o conhece?
Outras vozes responderam:
- Não, parece que não é daqui.
Mais vozes replicavam:
- Não toquem nele até a polícia chegar.
Carros paravam, desviavam do homem inerte. Transeuntes se aglomeravam, palpites inundavam aquela breve pausa, quebrando a rotina do vai e vem das grandes cidades.
Indiferente, agora, Ségio habitava um mundo diáfano, repleto de uma paz desconhecida, até então o seu corpo parecia flutuar entre o nada e o tudo.
Sentia em seus pés o roçar da água gelada, que se contrastava com a quentura do chão. Suas pegadas iam sendo, pouco a pouco, apagadas pelo movimento lento e contínuo das águas invisíveis, fazendo-o esquecer os caminhos das memórias vividas e escondidas ao longo de sua vida.
Agora, ele era todo areia,sol, vento, pedras silenciosas e seculares, banhada por aquele mar de mistérios.
- Ele deve estar sofrendo muito!
- É preciso levá-lo rapidamente para um hospital.
- Não, não mexam nele, até a polícia chegar.
- Mas ele pode morrer...
As frases soltas e confusas preenchiam aquele vácuo.
A polícia nada de chegar e Sérgio já não se importava com isso.
À medida que o tempo escapava aprisionado pela ampulheta do desespero de muitos curiosos, isso parecia ter menos importância para ele.
Por fim, a polícia chegou, fazendo o alarido de sempre. Feito o primeiro atendimento, agora era urgente tranasportar o ferido. A viatura disparara pela Avenida Pricipal, ziguezagueando, esforçando-se para chegar ao hospital mais próximo.
Uma pausa e por fim aproximou-se da orla.
Olhou o azul distante, tentando saborear a paisagem. Mais uma vez, sentiu o acariciar das águas geladas do mar. Agora se viu nu, sentiu o prazer da liberdade. Deitou seu corpo sobre as ondas, mergulhou profundamemente em seus seios. Começou a nadar, distanciando-se da praia com lentidão e firmeza e movimentos contínuos.
Aproximaram-se da entrada do hospital. Por pouco não ocorreu um grave acidente com uma ambulância, que também chegava ao local com um ferido grave. Na porta da emergência, arrumaram rapidamente uma maca e o carregaram.
Correria, soro, primeiros socorros, enfermeiros suados, roupas brancas, luzes acesas, rostos preocupados e o sangue a se espalhar.
Sérgio ausentava-se em sua completude, misturando-se com o horizonte na distância imaginária.
Comments