Saulo César Paulino e Silva
Uma réstia de luz invadiu a tarde enquanto nuvens de chumbo anunciavam a chuva, que se aproximava. Gotas despencaram, órfãs de suas origens, transpassando a folhagem em busca do tempo aprisionado em flores mortas e amarelas.
Fragmentos de conversas secretas permearam os passos indecisos da mulher, que subia pela alameda úmida; nua em suas roupas encharcadas, parecendo jogar xadrez com os desenhos geométricos das pedras regulares do calçamento. O ar exalava terra molhada, que se misturava ao vento contido, adiando sentimentos e ilusões quase apagadas.
Bárbara se apressou em chegar.
O coração se apertou de medos escondidos, enforcando o peito, onde a linha da vida tangencia a perspectiva da partida, transcrevendo-se para a paisagem de sua subjetividade.
Como reencontrar o seu olhar oceânico de sorriso ausente?
Qual seria o sentido para o seu corpo e para as marcas com dizeres de desejos profanos?
Talvez fosse isso que procurasse por aqueles caminhos ...
Onde estaria a casinha de brinquedos, em que costumava guardar seus sonhos para o dia seguinte?
Perguntas...perguntas...sem respostas!
De onde vinham?
De alguém que não se reconhece?
Reflexões inesperadas amedrontavam a sua respiração, corroendo seus pensamentos adormecidos. Seus olhos tentavam reconstruir o momento fragmentado. O vazio se preenchia naqueles instantes de insanidade paralela.
Bárbara parecia cair ao chão.
Seu olhar escurecia diante de uma fraqueza inevitável, envolvendo-a em um turbilhão, no qual era difícil discernir a lucidez do mundo, que minava aos poucos todo o seu ser.
No final da estreita rua, bem lá no alto, sua memória, quase inerte, reconheceu um jardim; portões de altura mediana surgiram entreabertos, congelados pelo último movimento que lhes permitiu se abrirem, rangendo sob a ferrugem que corroía sua própria estrutura.
Bárbara vai se aproximando com o peso de séculos, encurtando uma distância quase eterna. Dá mais um passo, apoiando-se no muro, e a casa, um dia quase toda branca, surgiu por detrás do abandono.
Esboçou-se, ali, uma lembrança momentânea entre as floreiras que alegraram durante vários natais, a metáfora da infância! Nos fundos da casa ainda podia-se observar os restos de uma pequena construção, talvez aquela mesma onde havia guardado todos os seus segredos.
Entre a alegria e o desespero, dúvidas.
O que fazer?
Fugir?
Encontrar?
Partir?
Chegar?
Entre pensamentos inaudíveis, questionamentos, apenas!
Sua mão empurrou o portão. Seu corpo vacilou, mas atravessou para uma passagem de dor e esquecimento.
Suas pernas ganharam novo equilíbrio e avançaram.
A casa tinha tamanho modesto.
A fachada discreta revelava uma arquitetura comum. As janelas miravam indiferentes a visita inesperada. A porta de entrada semidestruída ainda não impedia a passagem pela varanda, que se decompunha.
Pelo quintal, o efeito do tempo pintava um cenário de tristeza em que Bárbara percebia-se. Mais curiosa do que assustada, aproximou-se do batente em desalinho. Um giro e a maçaneta não resistiu. Deu uma volta e sob um lamento abriu-se uma fresta, que lhe permitiu sentir o hálito quente e mofado vindo do interior.
Adentrou aos escombros e procurou, na escuridão abundante, os afetos de antanho em algum retrato sem moldura; caminhou por onde supunha ter sido a sala de tantas alegrias!
O mato brotava do chão de madeira apodrecida; e entre as gretas esguias, ouvia as vozes de seu próprio respirar. De repente, ratos debandaram em marcha fúnebre. As paredes que se suportavam, vergando-se; poderiam vir abaixo a qualquer instante, antes que o galo cantasse três vezes!
Uma longa pausa para o nada e Bárbara reviveu, no absoluto, a história de seus ancestrais. Os quartos com seus espaços convidavam para revisitar vestígios em meio a um torvelinho de sentimentos.
Lá fora, a chuva continuava a castigar a terra.
À medida que se tornava mais intensa, goteiras passavam a se manifestar por todos os lados. Aos poucos, uma melodia invadiu todos os cômodos. Seus ouvidos ficaram atentos, aguçados, procurando identificar de onde viria. Uma peça erudita, com andamento Allegro ma non troppo, concluiu satisfeita, após uma breve reflexão, permeada pela atmosfera insalubre dos corredores vazios.
A chuva e o som se fundiam naquele ar em que os náufragos sem alma se perdem na paisagem de qualquer mar.
Bárbara estava absorvida por um misterioso hiato, que se estendia entre a não-nulidade e o eterno.
Um clarão faiscou no céu.
Um raio trovejou desperto e fez estremecer os alicerces da velha construção.
Perdida, agora, no reencontro de sua sanidade, não temia mais os lobos, que rondavam os seus medos diários, deixando-se, assim, abandonar em suas paixões.
Como sempre digo, cada dia uma boa surpresa... muito bom esse conto, nos faz mergulhar em nossas próprias nostalgias que normalmente esquecemos dentro de uma velha casa abandonada... parabéns meu amigo, sensacional esse conto!