Antes de apresentar "As histórias do Tio Bizoga", gostaria de falar um pouco sobre essa breve narrativa, para contextualizar os nossos queridos e queridas leitor@s.
Trazemos em nossas vidas, a memória da infância, quando ainda olhávamos o mundo com a lente da inocência. Os descobertas, as molecagens, a criatividade de um tempo, que fez parte da construção de nossas identidades sociais.
Esse mundo tecnológico, onde vivemos hoje, nos da a oportunidade de, mesmo à distância, poder reencontrar velhos amigos, e relembrar, por vezes, passagens de momentos importantes. Outros, infelizmente, já partiram deste plano e, talvez, possamos nos reencontrar em algum outro momento, se vocês acreditam nessa possibilidade!
Ao contrário do que pensam alguns contemporâneos meus, que ficaram presos ao passado, procurando justificar que aquele tempo era melhor, prefiro resgatar aqueles bons momentos para saboreá-los nos dias de hoje, pois assim será possível mensurar o quanto aprendemos nesse "estradar". É por isso que sempre digo que o meu tempo é hoje; uma espécie de máxima que levo para a vida.
Também é importante ressaltar que recontar essas lembranças, não é construir uma narrativa fiel e literal aos episódios vivenciados, inclusive naquilo que tange à linguagem, particularmente do personagem principal. Aqui, podemos dizer que a criação é livre, embora os personagens correspondam à realidade.
Apresento ainda dois desenhos. No primeiro, procurei nas imagens guardadas uma cena que representa parte daquela vivência, quando sentávamos à volta de uma fogueira improvisada. No segundo, procurei rememorar a fisionomia do "Tio Bizoga", e desenhei uma imagem com as suas principais características físicas, ou seja, rosto redondo, bigode farto e cabelo curto.
Deixo também indicada, abaixo, a ´música de Elomar Figueira Melo "Arrumação", que, em um de seus trechos (destacado com grifos) faz referência à "onça prisunha", do folclore da rica cultura nordestina.
Espero, que apreciem.
ARRUMAÇÃO
Josefina, sai cá fora e vem vê Ó os forro ramiado vai chuvê Vai trimina reduzir toda criação Das bandas de lá do ri' Gavião Chiquera pra cá, já roncô o truvão
Futuca a túia, pega o catadô Vamo plantar o feijão no pó
Mãe, prurdença, inda num cuieu o ái O ái roxo dessa lavora tardã Diligença pega o pano e cum balai Vai cum tua irmã, vai num rumo só Vai cuiê o ái, o ai de tua avó
Futuca a túia, pega o catadô Vamo plantar o feijão no pó
Lua nova, sussarana vai passá Seda branca, na passada ela levô Ponta d'unha, lua fina risca no céu A onça prisunha, a cara de réu O pai do chiquêro, a gata comeu Foi um trovejo c'ua zagaia só Foi tanto sangue de dá dó
Os cigano já subiro bêra ri' É só danos, todo ano nunca vi Paciênça, já num guento a pirsiguição Já só caco véi, nesse meu sertão Tudo que juntei foi só pra ladrão
Futuca a túia, pega o catadô Vamo plantar o feijão no pó
Futuca a túia, pega o catadô Vamo plantar o feijão no pó
Futuca a túia, pega o catadô Vamo plantar o feijão no pó
'Brigado
A luz fraca da rua refletia o chão descalço.
A casa do Severino, nosso amigo "Ciba", era simples com uma janela na frente e uma porta alta, na lateral. Ali, passávamos várias horas eu, Dona Nina, seu Nelson, o Paulinho, A Gilmara, o Carlinhos (irmãos mais novos do Ciba) e o próprio Tio Bizoga. Era uma habitação dessas em que há várias casas no mesmo terreno e as famílias compartilham o espaço, como a da Fátima, filha da Inês e do Álvaro (corintiano roxo), nossos vizinhos. Formávamos, ali, naquele distante bairro da Zona Leste, uma pequena comunidade.
As histórias de assombração excitavam os nossos olhos curiosos, projetados para a imaginação de cada um. Na verdade, ao se referir a essas histórias, o pessoal nordestino chamava de "histórias do norte". Uma das mais comuns e que sempre arrepiava os pelos de todo o corpo era sobre a "onça prisunha". Segundo a lenda, essa onça possuía, acima das patas dianteiras, na parte detrás, um par de unhas, que a identificava como perigosa, mas, acima de tudo, como coisa do outro mundo, pois viraria "lobisomem" em noite de lua cheia.
Antes de entrar nas histórias, propriamente ditas, é importante relembrar a figura central dessa fase de minha infância. O Ciba, como nós o tratávamos, tinha um tio, que era conhecido como "Bizoga", muito querido por todos, mas não me perguntem qual o significado desse apelido, que eu não saberia responder. Nordestino de estatura mediana, bigodes fartos, rosto arredondado e um largo sorriso foram as lembranças, que mais me marcaram.
Mas, deixando de lado os pormenores, o fato é que o Bizoga era um contador de "causos", como ele só! Quando começava a falar, a molecada já ia se achegando, e ficava toda em volta , atenta, imaginando sobre aquilo tudo que ia sendo descrito, entre pausas, olhares assustados e muito suspense.
O cenário preferido para essas conversas, era a noite, depois que chegávamos da escola, uma escola pública nas redondezas de nome Deputado Silva Prado, onde a maioria dos amigos estudava. Nas noites de inverno, acendíamos uma fogueira, e ficávamos todos ali, viajando na imaginação no tempo em que a periferia de São Paulo ainda permitia essas coisas. Além do frio, que parece ser diferente dos dias de hoje, as ruas também não eram asfaltadas e havia muitos terrenos baldios e, consequentemente, muito mais árvores e vegetação em volta. O ponto em que acendíamos nossa fogueira ficava em um terreno baldio, na rua do "meio", ao lado da casa da Rosinha, filha da Rosa e do seu Ariston, que dirigia o seu fuscão azul de uma autoescola.
Voltando a nossa história, ou melhor, às histórias do Bizoga, certa noite durante uma de nossa conversas, em que o frio congelava até os ossos, estávamos em volta do fogo, quando ouvimos aquela voz conhecida, cumprimentando a todos.
- Boa noite pessoal, falou Bizoga com seu sotaque nordestino e de riso aberto.
- Boa noite, respondemos em tom de ansiedade.
Mal tinha se sentado e a pergunta fatal:
- E hoje, Tio Bizoga, o que vai contar pra gente?
- Ah, Tio, conta aquela da onça "prisunha", pediu o Ciba com sorriso maroto.
- Ocês que sabe. Mais depois num vem os pai de ocês dizendo que tô assustano a meninada com minhas histórias.
- Ah Tio, o coro de vozes, suplicou:
- Conta, ai, conta.
- Tá bom, eu conto. Mais depois num quero sabe se alguém num drumiu direito, tá?
- Certa vez, eu tava lá em Pesqueira do Alto, vinha caminhando de volta pra casa, depois de uma noitada boa e já era bem tarde. Talvez, daqui um tempo, ocês vão sabe o que se faz numa noitada. Mais como dizia, eu vinha com uns óio em Deus e o outro no Capeta. Achava que a qualquer momento ela ia sair detrás de um pé de aveloz.
A lua clareava tudo em volta, que nem essas luz que a gente vê por aqui nas ruas de São Paulo. Num tinha viva alma naquela imensidão, Casa de alguém? Nem pensá. Mas o cabra quando é macho num tem medo, e vai até onde o cramunhão está escondido, mas sempre com a peixeira na cinta, afiada e pronta pra arrancar os bucho de algum valente.
Sei que naquela noite eu já tava meio "chumbado", mas ainda alembrava o caminho de casa. Vinha com a festa na cabeça. Quanta muié bunita! Quanta pinga da boa! A música correu solta até altas hora. Depois, no caminho de volta, em algum momento o mato fechava tudo e o jeito era dar a volta ou passa pelo meio.
Num tive dúvida, meti a mão na cinta, tirei a bicha, que alumiou seu fio, na luz da lua e lá fui eu. Os grilo cantava aqui e ali, soluçando sua música alegre, mais de repente, ficaro tudo quieto. Parece que cum medo de alguma coisa, que eu não conseguia vê.
Já tava achando que era coisa da minha mente, só que, quando menos esperava, de repente, por detras de umas moita vi uns oio brilhando. Pensei que podia ser uma brasa, como essas que ocês tão vendo agora. Deus me livre e guarde, me arrepio todo, só de lembrá. Os oio começaro a crescer e vinha na minha direção. Os cabelo arrepio, quis gritá, mas não deu. As pernas ficou bamba, e o coração parecia explodir.
A essa altura da narrativa, ninguém piscava. O Tio Bizoga era bom naquilo que fazia, e dificilmente seria superado nessa arte. O Ciba de boca aberta, olhos vidrados, estava imóvel. O Paulinho abraçava os próprios joelhos, eu, então, sentado, procurava no chão alguma coisa para não pensar como acabaria aquela história. O Carlinhos e Gilmara, já tinham batido em retirada, impelidos, talvez, pelo medo de enfrentar a distância entre o lugar onde estávamos e suas próprias casas.
Continuou o Tio Bizoga:
- Desembestei a corre pelo mato a dentro, que nem vi o que tava acontecendo. Cheguei em casa tropicando. Foi quando a Mãe disse:
- O que é isso, Bizoga, tá doido home?
- Que tá acontecendo?
Depois de engolir em seco, lá fui eu tentar explicar.
- Sabe, Mãe, é o Capeta. Ela tava vino atrás de mim. Tava escondido no caminho da Vila.
Mãe, com ar desconfiado, foi dizendo:
- Que capeta, que nada, muleque. Isso é bestera da sua cabeça. Ocês sabe que a véia num acredita nessas coisa de assombração.
- Passado o susto, fui beber um copo d'água e corri pra baixo das coberta, mas com os ovido todo atento. Num passo muito tempo e lá fora, no terrero, escuto um barulhão. A galinhada começou a reclamar. Mãe saiu da cama dizendo:
- Que diabos tá acontecendo lá fora?
Chico, nosso cachorro, avançou em alguma coisa, com muita raiva.
- Mirando por uma fresta da janela, Mãe falou:
- Num tô veno nada. Não se pode nem dormir, lá vem uma peste azucrinar a vida da gente.
Chico deu um latido muito alto e ficou quieto, de repente. As galinha também ficaro quieta. Eu já estava pensando que podia ser a mula sem cabeça. Mas ai pensei: oxê, se a mula não tem cabeça, não tem zoio, também, certo?
Tava ali com meus pensamento, quando Mãe falou que ia sair.
-Num vai lá fora, Mãe. O coisa ruim tá lá!
- Deixa de besteira, muleque. seja lá o que for, tá matando tudo os nosso bicho.
Ela já estava abrindo a porta, com o lampião na mão, quando um estrondo na janela fez ela voltar. Vi isso com esses zoio que a terra há de comer os cabelo da Mãe se arrepiá inteiro. Ela oio pra mim, gritando:
-Virge Maria, Cruz Credo, Virge Santíssima. Volta pra cama Bizoga, vamo drumi, e amanhã a gente vai ver o que aconteceu.
Mas a coisa num ia embora. Ficava assuntando do lado de fora da casa. Passava na frete da porta, dava uma arranhada e fazia um baruião dos inferno. Eu num despregava os oio, por mais que tentasse drumi, não dava. Lá pelas tantas, eu e Mãe, pegamos no sono.
A essa altura, todo mundo estava parado. Caras espantadas, encolhidos pra esquentar o frio, a molecada esperava o dinal da história.
Tio Bizoga continuou:
- Então, o dia amanheceu bunito, que só. Mal clareou, saimo da casa pra ver de perto o que tinha acontecido. Logo que abrimo a porta da frente, o Chico veio correndo, com o rabo abanando e a cara toda arranhada. As galinha, tudo solta, ciscano pelo terrero. Algumas estavam mortas, espalhadas aqui e ali.
No chão, perto da janela, vimos pegadas como de onça. Mas era muito grandes. Até hoje, ficamos sem saber o que era. Mas pelo que contam, naquelas bandas, dizem que é o coisa ruim, que aparece pra assustar as pessoas em noite de lua cheia.
Falando isso, olhou pra cada um de nós, com ar misterioso e arrematou o final da narrativa dizendo:
-Pessoal, tá ficando tarde, e vi que a lua tá cheia, hoje. Hora de ir pra casa.
Depois dessa história, o mais difícil era enfrentar os quase 300 metros, que separava a fogueira de nossas casas. Rapidamente, cada um pegou o seu rumo, alguns, mais apressados saíram correndo, mesmo.
Tem gente que diz que é besteira, outras acreditam nas histórias do povo, marcadas pela tradição oral, como essa que o Tio Bizoga nos contou, lá nos tempos de nossa infância. Mesmo sabendo que é uma história, talvez, imaginada pela rica cultura nordestina, os aprendizados ficam.
Por isso, quando você estiver andando por algum lugar à noite, uma rua, uma estrada ou um caminho qualquer, e for noite de lua cheia, e o céu estrelado, fique atento. Observe ao seu redor se há um par de olhos vermelhos, como brasa, a espreitar na escuridão. Se isso se confirmar, é melhor começar a correr, pois pode ser o coisa ruim o talvez a sua imaginação pregando mais uma peça.
Muito legal o Bizoga e a coisa ruinzinha... folclórico, nostálgico e fantástico... algo que devemos cultivar, nas suas essências lúdicas, do imaginários de nossas crianças, pois desperte e desenvolve uma criatividade exuberante! Parabéns poeta por esse resgate maravilhoso!