Hoje, compartilhamos mais um texto do escritor e jornalista Jair Farias.
Autor de “Trilha do Sol”, entre outras importantes obras, convida o leitor para uma espécie de imersão quase-psicodélica, que evoca as memórias de liberdade superlativa ao modus vivend de Woodstock.
Exímio na construção de narrativas subjetivas, Jair Farias apresenta, mais uma vez, personagens marcantes pela sua singularidade provocativa e, ao mesmo tempo, aparentemente ingênuas, como Clara e Plinio, por exemplo, em seu existir ficcional.
No entanto, um olhar mais atento, sob a lente da fenomenologia, talvez haideggeriana, nos aponta para um cenário mais apropriado para essa leitura, costurando-se, assim, como uma tessitura interpretativa possível.
É a partir dessa perspectiva, que convidamos os amigos e amigas para conhecerem mais um trabalho criativo e impecavelmente estruturado, que tanto carece o mundo ficcional, atualmente.
Espero que apreciem.
A trilha do sol, um enigma que transcende a lógica, uma fenda na realidade onde o real e o irreal se encontram, se entrelaçam. Talvez um geólogo, em sua linguagem técnica, conseguisse fornecer uma explicação racional para sua formação. Mas, a verdade é que ela se impõe, desafiando a rigidez da flora da serra do mar, como um caminho de lajes forjado pelos deuses no meio da mata selvagem. Quem passa por lá sente o encanto do lugar, uma sensação de liberdade que, mesmo efêmera, é absoluta em seu deslumbrante contato com a natureza.
Da civilização e ocupação do homem, apenas a relva lançada pelo vento e pisada por pés desconhecidos permanece. Da crista do morro, avista-se uma dezena de cachoeiras, vilarejos mineiros e cariocas, ainda que estejamos em São Paulo. A trilha, mágica em sua essência, é um desenho da imaginação. Alguns dizem ser uma pista de extraterrestres, infiltrados em nossa sociedade, participando silenciosamente de nosso cotidiano.
Clara, com sua doçura e convicção, acredita nessa teoria. Um dia, disse-me que é filha de um ser de outra galáxia. Seus sonhos abstratos são janelas para realidades outras, e seu sentimento de deslocamento é um testemunho de sua origem estelar. Ela está convencida de que está em uma missão, aguardando o momento certo para que tudo lhe seja revelado.
Seu amigo Plínio, com uma fé silenciosa e inabalável, não questiona a história de Clara. Ao contrário, alimenta-a com detalhes surrealistas. São jovens que se desprenderam dos costumes e normas da sociedade, vivendo em completa harmonia com a natureza. Habitam uma cabana próxima à Cachoeira Véu de Noiva, em Maringá. Com uma vida primitivista, recusam os confortos da energia elétrica e da água encanada, orgulhando-se de cozinhar no fogo à lenha.
Clara, imersa na vida selvagem, já não se reconhece nas cidades, nas suas regras e normas, e na sua artificialidade. Sua beleza exótica, uma flor rara no meio da floresta, cativa todos ao seu redor com um carisma que parece derivar da própria terra. Plínio, criado na agitação e no concreto da cidade grande, viu-se enfeitiçado pelos encantos de Clara, e abriu mão de toda sua vida anterior para viver ao seu lado. Desde o primeiro encontro, uma faísca de paixão incendiou seu coração. Clara o acolheu, como se ele fosse um componente necessário de um destino que une opostos em uma única obra. Conectaram-se, seus espíritos entrelaçados como raízes subterrâneas.
Plínio não cessava de expressar seus sentimentos, enquanto Clara declarava seu amor pelas árvores, pelas águas, pelo vento, pelo sol, pela lua, e por ele, com igual intensidade. Amava também outras pessoas, como Lara, Mara, Carlão, Pascoal, e todos os que passaram por sua vida, ajudando a escrever sua história. Viviam em paz na serra de Itatiaia, mas vez ou outra enfrentavam o assédio dos moradores locais, que não conseguiam aceitar a liberdade e naturalidade com que viviam.
Era comum vê-los caminhando nus, ou fazendo amor sobre a relva, sob o sol ou o luar. Em certo dia, alguns moradores, liderados por dona Carmélia, se reuniram para protestar contra o que chamavam de libertinagem dos jovens amantes, exigindo que adotassem um comportamento mais recatado ou deixassem o lugar. Foi um golpe cruel para Clara, que não compreendia tamanha censura à sua liberdade essencial. Plínio, indignado, repudiou a opressão e imposição, gritando que ninguém tinha o direito de invadir suas privacidades. Aquilo era uma arbitrariedade, um desrespeito aos seus direitos mais básicos.
Do outro lado, dona Carmélia e os demais moradores insistiam que, ou mudavam de comportamento, ou sairiam de lá, sob ameaça de consequências. Nenhuma das soluções impostas foi aceita, e continuaram suas vidas como se nada houvesse acontecido.
Clara dizia: “Não se pode proibir o pássaro de voar, as bromélias e orquídeas de florescerem, nem a paca de fazer sua morada na mata”. Não levaram a cabo o teor das ameaças.
Clara e Plínio, habituados aos olhares vigilantes e rudes dos moradores locais, sentiam-se observados continuamente, como que por olhos ocultos entre a mata. Numa resposta rebelde, Clara e Plínio se exibiam, numa atitude desafiadora, afrontando a moralidade dos intrusos.
Com o assédio crescente, que começava a causar-lhes desconforto, decidiram empreender uma retaliação fictícia. Simularam um ritual de magia negra na clareira próxima à trilha do sol. Recitaram mantras, dançaram em torno de uma fogueira e fingiam-se benzendo com ramos de folhagens, enquanto entoavam: “Todo o ódio por nós que se reverta em amor, toda dor em alegria e que o mal retorne a quem o pratica”.
Divertiam-se com a encenação, como crianças em brincadeira, gargalhando e dançando ao redor do fogo. Sabiam-se observados e isso intensificava a provocação. Estavam nus e, num momento de êxtase, amaram-se loucamente, como animais selvagens.
Apesar dos olhares silenciosos à espreita, o jovem casal divertiu-se. E os intrusos, na clandestinidade de bisbilhoteiros, se incomodaram calados, transbordando de ódio e ranço pelo que assistiam. O suposto ritual durou a noite inteira sob a luz da lua. Pela manhã, cansados, recolheram-se à cabana e dormiram até o sol se pôr. Acordaram famintos, leves, rindo do possível efeito que o evento poderia provocar, e depois deitaram-se sob o manto de estrelas, brincando de adivinhar em qual constelação um dia morariam.
No dia seguinte, rompendo a sinfonia encantada dos pássaros, vozes ásperas invadiram o ambiente, perturbando a serenidade do amanhecer. Eram alguns moradores locais, munidos de espingardas, facões e porretes, gritando pelo nome de Clara. Assustado com o alvoroço, Plínio, da janela da cabana, questionou:
— O que querem?
— Que revertam o feitiço contra dona Carmélia, que está acometida de uma enfermidade, delirando e com febre incessante. Vocês fizeram uma magia contra ela e agora têm que reverter, ou morrerão hoje, aqui mesmo! — gritou um velho morador, empunhando um rifle.
— Nós? — retrucou Plínio. — O que fizemos?
Após um breve silêncio, veio a resposta:
— Sim, vocês... Disseram-nos que jogaram magia negra contra dona Carmélia e ela está muito mal. Se não reverterem o efeito do feitiço, ninguém sairá daqui — manifestou-se outro membro do grupo.
Plínio e Clara se entreolharam, sem entender o propósito. O ritual não passara de uma farsa para provocar os locais, sem nenhuma intenção de maldade. Tudo não passou de uma brincadeira, mas o reverso mostrava-se perigoso e assustador. Temendo uma reação mais hostil, responderam de dentro da cabana:
— Não fizemos nada contra ninguém. Sempre vivemos em paz. Não entendemos o que querem! — disse Plínio dissimuladamente.
— Que revertam o feitiço contra dona Carmélia!
— Mas não lançamos nenhum feitiço, deve haver algum engano — respondeu Plínio, enquanto Clara, agachada e encolhida, abraçava os joelhos, já esboçando um sutil traço de pânico.
— Saiam da cabana ou iremos tacar fogo nela! — gritou um mais exaltado.
— Estamos com medo. Vocês estão armados e enfurecidos... tememos por nossas vidas...
— Não foi falta de aviso, vocês que criaram essa situação, desrespeitando a todos da nossa comunidade! Saiam daí e retirem a magia contra dona Carmélia, ou será pior.
Plínio olhou para Clara, assustado, e falou:
— O que faremos?
Clara, sem saber o que fazer, improvisou:
— Ok, vamos sair e tirar o feitiço.
Plínio, sem entender, mas apoiando Clara, ergueu as mãos e saiu logo atrás dela.
Todos ficaram olhando para Clara, num misto de ódio e pavor. Clara falou:
— Preciso que façam algo. Colham folhas de goiabeira, de aroeira, arruda, boldo e espinheira santa, para eu fazer uma poção — disse, olhando para os moradores locais, e então virou-se para Plínio e deu uma sutil piscada de olho, continuando:
— Farei uma poção e, à meia-noite, sob o clarão da lua, vocês a darão a dona Carmélia, repetindo o mantra três vezes: “Deixaremos Clara e Plínio em paz, em nome da senhora natureza”.
Os moradores apressaram-se a providenciar os ingredientes, retornando com tudo o que foi solicitado uma hora depois. Clara juntou tudo em um pote, molhou e amassou com um socador de madeira, adicionou mais água e jogou em uma panela de barro. Depois, com o fogão à lenha aceso, ferveu os ingredientes, pronunciando palavras sem significado, como se rezasse um mantra em um idioma desconhecido. Fez uma infusão, coou e colocou em uma garrafa de plástico, entregando-a ao mais exaltado dos moradores.
— Façam o que falei e dona Carmélia irá melhorar.
Saíram e foram cumprir as recomendações.
Mal se afastaram, Plínio perguntou:
— Você pirou? Se isso não der certo amanhã tacarão fogo na cabana com a gente dentro.
— Se não der certo, diremos que foram os Deuses que assim quiseram… pelo menos hoje nos deixarão em paz.
Até hoje não se sabe o resultado daquela façanha; o que se sabe é que Plínio e Clara não foram mais incomodados e continuam suas vidas livres e soltas na serra de Itatiaia.
Quem é Jair Farias? (por ele mesmo).
Jair Farias Jornalista há mais de 25 anos, é formado pela PUC -SP; pós-graduado em Comunicação e Marketing pela METROCAMP -da cidade de Campinas, e em Marketing Político Eleitoral, pela ECA-USP. Trabalhou nas empresas Folha da Manhã, Editora Azul, Prefeitura de Jandira e também na Câmara Municipal de Santana de Parnaíba. Dentre as suas produções, destaca-se o romance Contos de S"oren que recupera em parte, um texto desenvolvido nos anos de 1980. Também foi autor de Macambira, que conta a saga de Pedro Farias, seu pai. Atualmente, trabalha em seu novo projeto, o desenvolvimento de seu mais recente romance, ainda em fase de revisão, intitulado "O trabalho de Sisifo". Se você quiser saber mais, acesse o endereço: / jairfarias3
Para conhecerem um pouco mais sobre Jair Farias e seu processo criativo, compartilho a entrevista realizada em nosso quadro “ Entre Amigos”, no ano de 2021. Aproveito a oportunidade para convidá-l@s para se inscreverem em nosso canal "Convergências"
Acessem: www.youtube.com/@Convergencias2
Comments